De reserva de valor a mais quilos de carne por hectare

Por Sergio De Zen, Thiago Carvalho, Mariane Crespolini e Caio Monteiro

A bovinocultura de corte teve início no Brasil praticamente com a colonização, sendo uma das primeiras atividades econômicas da nação. Os maiores historiadores, como Prado Júnior e Celso Furtado, consideram a atividade como a mais importante na função de ocupação do território, resultado da baixa exigência de investimentos de capital e da fácil adaptação às condições adversas de relevo e solo.

As oscilações dos preços na cadeia da carne bovina são explicadas pela história do País e pelo avanço das pesquisas científicas. Em condições normais, os preços do boi gordo deveriam ser formados a partir do equilíbrio entre oferta e demanda. Além de ser fonte de matéria-prima para o atendimento do consumo humano, o boi é uma forma de ativo econômico que se presta como alternativa relativamente segura de reserva de valor.

Em uma perspectiva histórica, em muitas ocasiões, essa reserva de valor parece ter exercido papel tão ou mais importante do que o de atendimento das necessidades de consumo. Nos momentos de instabilidade política e/ ou econômica, os agentes tendem a procurar ativos reais, como forma de garantir o valor real de seus patrimônios. A elevada liquidez, o baixo custo de manutenção e a flexibilidade temporal na negociação explicam o fato de o boi ser, frequentemente, a opção escolhida.

A Figura 1 ilustra os preços do boi gordo em São Paulo, de 1954 a junho de 2016, em Real, atualizados pelo Índice Geral de Preços da Fundação Getúlio Vargas – IGP-DI (junho de 2017). Como descrito a seguir, os preços do boi foram constantemente influenciados por períodos históricos.
O início da série coincide com o suicídio do presidente Getúlio Vargas e com o período de incertezas que se segue, com trocas de presidentes e, principalmente, de comando da economia. Os preços captam essas incertezas na forma de alta volatilidade e somente voltam à normalidade na gestão do presidente Juscelino Kubitschek. No período seguinte, porém, o mercado é abalado com a eleição de Jânio Quadros, seguida de novas turbulências relacionadas ao governo João Goulart, que culmina no Golpe de Estado de 1964. Neste período, os preços atravessam mais uma fase instável e o boi é uma garantia frente às oscilações da moeda nacional.

Na produção primária, os produtores mantinham pastagens nativas ou formadas por variedades pouco desenvolvidas. Regionalmente, o Cerrado ainda era um grande vazio. Os incentivos governamentais para a ocupação de novas áreas contribuíram para que, entre 1950 e 1975, o aumento da produção de carne bovina no País tenha sido 86% resultante da abertura de novas áreas e apenas 14%, dos ganhos de produtividade. Diversos produtores do sul e do sudeste do País deixaram as suas regiões em busca de novas oportunidades.

Na década de 1970, os dois choques do petróleo causaram insegurança e aceleração da inflação. Como consequência, o boi se valorizou. Foi na década de 1980, porém, que o produto ganhou notoriedade como reserva de valor. Isso aconteceu, primeiro, pelas sucessivas trocas de moedas relacionadas aos planos econômicos e pelas taxas elevadas de inflação.

Os preços do boi tornam-se, então, atrativos para os gestores de fundos de investimento dos bancos, que passam a incluir esse ativo nas suas carteiras. Aplicar em bois era uma das raras alternativas confiáveis de preservar, de forma líquida, a propriedade de valores em um ambiente econômico marcado pelo congelamento de preços e de salários e, inclusive, pelo até então inimaginável confisco dos depósitos bancários em poupança. Nesse clima propício à especulação, a atividade passou a ser atrativa pelas oscilações de preços, enquanto a produtividade e a eficiência ficavam em segundo plano.
Essa situação perdurou até 1994, quando o Plano Real teve sucesso no controle da inflação e a economia entrou no seu mais longo período de estabilidade. A formação das cotações do boi passou, então, a refletir basicamente o equilíbrio entre a oferta e a demanda. Assim, a especulação e a busca por reserva de valor deixam de ser objetivos dominantes e a produtividade predomina.

A estabilidade alcançada demandava esforço redobrado para a conquista de competitividade. O mercado interno passou a crescer pouco, de forma que a sobrevivência do setor passou a depender do fornecimento de produto a um custo que pudesse ser absorvido pelo consumidor – a maior parte, com baixo poder aquisitivo.

Novo cenário se descortina em 1999, quando dois eventos exógenos ao setor favoreceram a pecuária nacional. Forçado pela fuga de capitais, o Brasil promove flutuação do câmbio, que leva à desvalorização da moeda. Ao mesmo tempo, a crise iniciada na Europa, com a doença da “vaca louca”, abre para o País a oportunidade de se tornar um grande exportador de carne bovina.

Em 1998, o Brasil enviava ao mercado externo 300 mil toneladas e, em 2004, cerca de 1,2 milhão de toneladas, de acordo com dados da Secex (Secretária de Comércio Exterior). Espantoso, porém, é que, no mesmo período, o consumo interno passou de 30 kg/habitante ano para 35 kg/habitante ano, segundo o IBGE, quebrando o velho paradigma de que, ao se exportar mais, restaria menos ao consumidor nacional.

O crescimento das demandas externa e interna deveria elevar as cotações do boi com força, caso a oferta não tivesse crescido no mesmo ritmo. Os preços, contudo, limitaram-se a acompanhar a inflação, seguindo praticamente estáveis. Isto se deveu a ganhos de produtividade dentro da propriedade, como mostrado na Figura 3 a seguir. Esses resultados foram obtidos com investimentos em manejo das pastagens, suplementação mineral e investimentos em genética.
2017

Nos últimos meses, no entanto, a pecuária sofre com uma das maiores crises do setor. Há maior volatilidade de preços e alguns colaboradores do Cepea voltam a afirmar que preferem manter o boi no pasto como uma forma de reserva de valor. Comparando-se as médias mensais, de junho de 2016 até a do mesmo mês deste ano, o Indicador ESALQ/ BM&FBovespa do bezerro (Mato Grosso do Sul) cedeu expressivos 18,35%, em termos nominais. Esta é a queda mais expressiva, considerando-se a comparação anual de junho para junho, desde o início da série histórica do Cepea, em 2000.

Quanto ao boi gordo, o Indicador ESALQ/ BM&FBovespa cedeu significativos 17,88% de junho de 2016 até o mesmo mês de 2017, também em termos nominais. Assim como para o bezerro, este é o recuo mais significativo, considerando-se o mesmo comparativo dos últimos 12 meses, desde o início da série do Cepea, em 1997.

Muitos fatores explicam este movimento. O primeiro, está relacionado aos maiores investimentos realizados por pecuaristas em períodos anteriores, que resultaram em ganhos em produtividade e, também, à disponibilidade de fêmeas para abate. Após a operação Carne Fraca e os recentes desdobramentos políticos e econômicos da delação, a principal indústria do setor reduziu expressivamente o volume de animais abatidos. Com isso, a necessidade de preencher escalas de indústrias concorrentes foi rapidamente atendida, permitindo que estes agentes tivessem mais poder de negociação com o produtor.

Este cenário foi agravado pelo fato de a produção primária ser composta por número muito elevado de pecuaristas com pouca organização em comercialização conjunta e grande heterogeneidade no produto ofertado. A solução para vencer os desafios de 2017 estaria no aumento das exportações, oportunidade que tem sido prejudicada pelos problemas de imagem da cadeia. No acumulado do ano de janeiro a junho, o volume exportado ainda é 8,35% menor que o do primeiro semestre de 2016, conforme dados da Secex.

Esta grave crise na pecuária não afeta apenas o setor. Atualmente, é notória a relevância da bovinocultura de corte nas economias brasileira e mundial. Os levantamentos do Cepea indicam que, em 2016, a cadeia produtiva da carne bovina respondeu por 13,6% do PIB do agronegócio brasileiro que, por sua vez, representa cerca de 20% do PIB nacional. Ressalta-se que, dos produtos da cadeia, 45% foram gerados na produção primária.

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